É cediço por todos que a jurisprudência dominante é firme no sentido de que a expedição de carta precatória não suspende a instrução criminal, sendo possível o prosseguimento do feito, inclusive com o interrogatório do réu, ainda que pendente a devolução da carta pelo juízo deprecado1.
A expedição de carta precatória para a inquirição de testemunhas não impede a realização do interrogatório do acusado, pois não há suspensão do trâmite da ação penal. Todavia, ao se fazer uma análise detida do artigo 400 do CPP, bem como do artigo 222 do mesmo códex, verificaremos que esse entendimento majoritário não se coaduna com a regra prevista nos citados artigos e, de igual forma, viola claramente os princípios do devido processo legal, da ampla defesa e do contraditório. Veja-se o motivo.
Não há um julgamento justo sem a observância dos princípios da ampla defesa e do contraditório. Previsto na nossa Carta Magna, é a base fundamental para o processo.
A consagração da ampla defesa e do contraditório trouxe a necessidade do deslocamento do interrogatório para o final da instrução probatória. Qual o sentido dessa mudança?
Havia a discussão a respeito da natureza jurídica, todavia, tornou-se claro o interrogatório como meio de defesa, sem deixar, por óbvio, que é um meio de prova também, de forma secundária.
Sendo um ato de defesa, é inadmissível que a defesa venha a se pronunciar antes das provas que o acusam ou possam servir à acusação. A ampla defesa, por ser uma garantia constitucional, tem por objetivo garantir que o réu venha falar por último, se defendendo de qualquer carga acusatória.
Não parece crível que uma testemunha, mesmo sendo ouvida por carta precatória, possa falar após o interrogatório. Essa testemunha, independente da forma como foi ouvida, trazendo em seu depoimento fatos que possam ser utilizados pela acusação, ou que possam ser utilizados pela defesa, ficará sem o devido contraditório realizado pelo réu, pois este já se manifestou.
Na previsão do artigo 400 do CPP, fica evidenciado que o acusado em nenhum momento poderá ser ouvido antes das testemunhas. O artigo é claro ao trazer que, após as testemunhas de acusação e defesa, questionamentos aos peritos, acareações e reconhecimento, ocorrerá, em seguida, o interrogatório.
Ainda no artigo 400, verifica-se que dentro do seu bojo é feita uma ressalva, remetendo ao artigo 222 do CPP, onde traz a regra atinente à carta precatória, e, em seu parágrafo primeiro ainda prediz que a carta precatória não suspenderá a instrução probatória.
Antes de aplicar indistintamente a regra insculpida no parágrafo primeiro do artigo 222 do CPP, precisa ser feita a análise dita alhures.
O artigo 400 do CPP prevê a regra da oitiva das testemunhas arroladas pela acusação antes das testemunhas arroladas pela defesa. Essa sequência somente pode ser alterada se houver concordância de ambas as partes, ou, de acordo com o próprio artigo, quando ocorrer oitiva de testemunha por carta precatória.
Essa é a norma que o artigo 400 do CPP traz. A inversão da oitiva de testemunhas de acusação e defesa não configura nulidade quando a inquirição é feita por meio de carta precatória, cuja expedição não suspende a instrução criminal, a teor do que dispõe o art. 222 do CPP2.
Não há dúvidas quanto à isso. Mas a ressalva feita no artigo 400 do CPP, se refere tão somente a ordem das testemunhas, permitindo a inversão, contudo, jamais sendo autorizado que a testemunha seja ouvida após o interrogatório, mesmo se tratando de carta precatória.
Caso ocorra dessa forma, estará diante de uma grave violação ao contraditório e ampla defesa. Necessário que o réu seja o último a falar, pois tem que se defender de qualquer declaração de testemunha existente no processo, ou seja, o grande objetivo do interrogatório ser o último ato da instrução é para que seja garantido a ampla defesa. O réu precisa se manifestar sobre todas as provas que há contra ele ou até mesmo a seu favor.
O artigo 400 do CPP é claro, pois coloca a ressalva da carta precatória no momento a tratar das oitivas das testemunhas e, somente após passar pelos questionamentos dos peritos, acareações e reconhecimento, afirma categoricamente que em seguida ocorrerá o interrogatório.
Ao trazer que as cartas precatórias não suspendem a instrução, o CPP quis impedir que as testemunhas ouvidas na forma do artigo 222 prolongassem desnecessariamente a instrução, pois poderia violar a ordem das testemunhas. Mas jamais foi a intenção de violar uma garantia fundamental permitindo o colhimento das declarações das testemunhas após o interrogatório.
Importa trazer a destaque, trecho do voto do ministro Dias Toffoli, em sede do HC 166303/PR do STF, que trouxe, por maioria, a determinação do réu delatado se manifestar somente após o réu delator nas alegações finais.
No brilhante do voto do ministro, esse assim se manifestou:
“O contraditório se expressa no binômio “informação necessária + reação possível”, ressalvando-se que “esse segundo aspecto de mera oportunidade ou possibilidade de reação toma nuanças diversas em todos os processos em que se controverta em torno de uma relação jurídica indisponível, como é o caso do processo penal”. No processo penal, dado o risco de grave intervenção no direito fundamental à liberdade, a reação não pode ser meramente possível. O contraditório “há de ser pleno e efetivo, indicando a real participação das partes na relação jurídica processual” (GRINOVER, Ada Pellegrini. As garantias constitucionais do processo. In: Novas tendências do direito processual. Rio de Janeiro: Forense, 1990, p. 18 – grifos nossos).
[…]
No direito comparado, destaco que, nos Estados Unidos o direito a confrontar declarações incriminadoras de coimputado tem estatura constitucional. A Sexta Emenda estabelece que, em todas as persecuções criminais, o acusado terá o direito de ser confrontado com as testemunhas de acusação e de convocar testemunhas a seu favor (In all criminal prosecutions, the accused shall enjoy the right (…) to be confronted with the witnesses against him; to have compulsory process for obtaining witnesses in his favor (…)).”
Não resta dúvida, ainda mais no momento hodierno, a necessidade em defender o contraditório, tornando-o eficaz dentro do processo penal. Não há como se admitir a realização do interrogatório, um meio de defesa, ser realizado antes mesmo das testemunhas serem ouvidas, em que pese as oitivas serem por carta precatória. O contraditório e a ampla defesa não podem ficar à mercê de uma formalidade que tem por propósito tornar mais fácil a oitiva de determinada testemunha que se encontra fora da jurisdição.
É claro e evidente que a ressalva no artigo 400 é somente com intuito de impedir que a inversão da ordem seja causa de nulidade, mas jamais violar o direito do réu de se manifestar após as testemunhas.
Insta frisar que, a expedição bem como a audiência em que será cumprida a carta precatória, faz-se necessária que ocorra a intimação da defesa do réu, para que este possa acompanhar, inquirir e seja tornada eficaz a ampla defesa. Com o cumprimento da carta precatória, não se vê necessidade da sua juntada para que ocorra o interrogatório, vez que a defesa já participou da oitiva. O que não pode ocorrer é a oitiva ser realizada após o interrogatório.
A jurisprudência, não obstante ser dominante, precisa ser revista e alterada com fito de impedir que a expedição de carta precatória não impeça a realização do interrogatório. É preciso garantir que o interrogatório seja o último ato, sendo realizado somente após o devido cumprimento da carta precatória, caso seja expedida.
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1 – STJ; AgRg-HC 520.310; Proc. 2019/0197682-1; PR; Sexta Turma; Relª Minª Laurita Vaz; Julg. 17/09/2019; DJE 01/10/2019.
2 – TJSC; HC 4022782-26.2019.8.24.0000; Balneário Piçarras; Terceira Câmara Criminal; Rel. Des. Júlio César M. Ferreira de Melo; DJSC 16/08/2019; Pag. 565.
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Artigo publicado no site Migalhas.
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Autor: David Metzker.