Quando o réu for absolvido na primeira instância, mas depois condenado na segunda, não é suficiente publicar o acórdão no órgão oficial para garantir a ciência, mas deve-se informar o réu pessoalmente, sob pena de ferir a prerrogativa fundamental do acusado de recorrer da decisão.
Com esse entendimento, o ministro Celso de Mello abriu exceção à regra que prevê que não se pode conceder Habeas Corpus contra decisão de ministro de corte superior e mandou que um réu de Santa Catarina seja posto em liberdade, com suspensão do trânsito em julgado da sentença.
No caso em questão, o paciente tinha sido absolvido em primeira instância. Após apelação do Ministério Público ao Tribunal de Justiça de Santa Catarina (TJ-SC), ele foi condenado, mas sem ser informado pessoalmente sobre a decisão.
Em 5 de maio, o ministro Joel Ilan Paciornik, do Superior Tribunal de Justiça, negou um pedido de liminar em Habeas Corpus impetrado pela defesa, feita pela defensora Caticlys Nielys Matiello. “No caso, ao menos em juízo perfunctório, não é possível identificar de plano o constrangimento ilegal aventado ou, ainda, a presença do fumus boni iuris e do periculum in mora, elementos autorizadores para a concessão da tutela de urgência”, afirmou Paciornik.
Em 7 de maio, o ministro Celso de Mello não conheceu do pedido de HC enviado ao Supremo, por respeito à orientação colegiada que impede a concessão do remédio heroico contra decisão monocrática de ministro de tribunal superior, apesar de divergir pessoalmente desse entendimento.
No entanto, ao julgar os embargos de declaração, o ministro reconsiderou a decisão, por entender que o caso tem particularidades que justificam a exceção à regra. Além disso, citou exemplo da 2ª Turma do STF, que tem concedido ex officio ordem de Habeas Corpus, mesmo não conhecendo dos pedidos, quando o caso concreto justifica.
A jurisprudência do STF entende que a regra processual prevista no artigo 392 do CPP (que determina a intimação pessoal do réu e/ou do defensor por ele constituído quanto à sentença penal) não se aplica a acórdãos proferidos em sede de apelação e na via recursal extraordinária, sendo suficiente a publicação da decisão no órgão oficial.
No entanto, no caso concreto, pela análise dos documentos apresentados o ministro constatou que o réu, assistido pela Defensoria em todo o processo penal, foi absolvido na primeira instância. Não há, no entanto, qualquer elemento que indique que o réu tenha sido informado de que a absolvição foi revertida depois do julgamento de apelação interposta pelo Ministério Público.
“As circunstâncias acima delineadas permitem reconhecer que o exercício das prerrogativas inerentes ao direito de recorrer, por parte do ora paciente, restou aparentemente prejudicado, revelando-se acolhível, nesta sede de sumária cognição, a alegada ofensa ao postulado do ‘due process of law'”, afirmou o ministro na decisão.
Respeito ao devido processo
Quando se está em jogo a privação da liberdade, afirmou Celso, o Estado não pode exercer sua autoridade de maneira abusiva ou arbitrária. Qualquer medida imposta pelo poder público que resulte em consequências gravosas no plano de direitos e garantias individuais exige obediência ao devido processo legal.
Do contrário, o poder público estaria ferindo o princípio básico dos direitos da pessoa humana, que deveria ser respeitado incondicionalmente pelo Estado. Os direitos básicos, afirmou o ministro, “impõem-se como limitações insuperáveis ao poder de investigar, ao poder de processar e ao poder de julgar”.
“É tão delicada a questão concernente ao alegado desrespeito ao postulado do devido processo legal que a inobservância de qualquer de suas cláusulas pode infirmar a própria validade do processo penal, eis que a nulidade resultante desse comportamento do Estado evidencia clara ocorrência de prejuízo aos direitos de quem sofre persecução penal”, refletiu.
Controle de convencionalidade
Por fim, o ministro ainda abordou o controle de convencionalidade referente à situação processual, uma vez que o réu teve negado um direito fundamental contemplado pela Convenção Americana de Direitos Humanos. Em seu artigo 8, n. 2, “h”, o texto assegura a qualquer pessoa acusada “o direito de recorrer da sentença a juiz ou tribunal superior”.
O ministro afirmou que, pessoalmente, reconhece que “os tratados internacionais de direitos humanos assumem, na ordem positiva interna brasileira, qualificação constitucional”, apesar de julgamento plenário do STF no qual se atribuiu caráter de supralegalidade às convenções internacionais.
No entanto, quer os tratados tenham caráter constitucional ou natureza supralegal, é inegável que a situação do réu no processo analisado põe em perspectiva “a grave questão concernente a um direito fundamental que os pactos internacionais reconhecem àquelas que sofrem persecução penal instaurada pelo poder público”.
Assim, o ministro acolheu os embargos de declaração no pedido de HC, determinando a suspensão da sanção penal imposta ao réu (com soltura imediata) e da certidão do trânsito em julgado do acórdão que o condenou. As medidas valem até o julgamento final do writ.
Fonte: ConJur.