É de sabença dos que militam na área que a estrutura do Direito Penal é formulada de maneira a aplicá-lo apenas quando for estritamente necessário. Isso justifica a sua rotulação como a ultima ratio do Direito através do princípio da intervenção mínima, ou seja, só deve ser utilizado quando as demais esferas de controle não responderem efetivamente ao dano ocasionado, sendo outros ramos menos onerosos e mais eficazes, características da mínima intervenção, com a fragmentariedade e subsidiariedade.
Diante da característica do Direito Penal ser a forma mais enérgica de coerção na liberdade dos cidadãos, tem-se que sua intervenção seja mínima.
Na análise do conceito de crime, especificamente no que tange ao fato típico, aprendemos que a tipicidade penal exige uma ofensa de alguma gravidade aos bens jurídicos protegidos, pois nem sempre qualquer ofensa a esses bens ou interesses é suficiente para configurar o injusto típico.
Assim, é possível que em determinadas situações a conduta seja incapaz de atingir materialmente o bem jurídico tutelado, ainda que ela se amolde formalmente ao tipo penal. Caso ocorra, estaremos diante do princípio da lesividade ou da ofensividade, visto que em razão do conceito material do crime é necessário que haja efetivamente lesão ou perigo de lesão ao bem jurídico. Caso não haja, haverá a tipicidade formal, mas estará ausente a tipicidade material.
Feita essa análise, passa-se a tratar da insignificância.
Não obstante o Direito Penal apenas intervir em condutas graves, diante do caso concreto, podemos nos deparar com condutas insignificantes alcançadas pelo Direito Penal. Nesses casos, aplica-se o que a doutrina cunhou de princípio da insignificância (ou bagatela), conforme nos ensina o excelente magistério de Francisco de Assis Toledo:
“Welzel considera que o princípio da adequação social bastaria para excluir certas lesões insignificantes. É discutível que assim seja. Por isso, Claus Roxin propôs a introdução, no sistema penal, de outro princípio geral para a determinação do injusto, o qual atuaria igualmente como regra auxiliar de interpretação. Trata-se do denominado princípio da insignificância, que permite, na maioria dos tipos, excluir os danos de pouca importância.
Não vemos incompatibilidade na aceitação de ambos os princípios que, evidentemente, se completam e se ajustam a concepção material do tipo que estamos defendendo”. (1994, p. 133).
Segundo o princípio da insignificância, que se revela por inteiro pela sua própria definição, o Direito Penal, diante de sua natureza fragmentária, deve ser aplicado em observância aos limites necessários à proteção do bem jurídico.
Os tribunais superiores reconhecem frequentemente a aplicabilidade do princípio em estudo, mas estabelecem alguns requisitos necessários, sendo eles: a) a mínima ofensividade da conduta do agente; b) a ausência de periculosidade social da ação; c) o reduzido grau de reprovabilidade do comportamento; e d) a inexpressividade da lesão jurídica causada.
Mas e nos casos em que os requisitos supracitados forem preenchidos e for o agente reincidente nos termos definidos pelo Código Penal Brasileiro?
A reincidência, conforme decisões exaradas pelos tribunais superiores, não se impõe como um impeditivo absoluto ao reconhecimento, contudo, a habitualidade criminosa não pode ser ignorada quando da análise do grau de reprovabilidade da conduta do agente.
O STF já se manifestou de diversas formas, em uma delas o Plenário do Supremo decidiu que a aplicação do princípio da insignificância deve ser analisado caso a caso pelo juiz de primeira instância e que a corte não deve fixar tese sobre o tema. Apesar disso, o tribunal definiu que a aplicação do princípio da insignificância envolve um juízo amplo, que vai além da simples aferição do resultado material da conduta, abrangendo também a reincidência ou contumácia do agente, elementos que, embora não determinantes, devem ser considerados.
Nesse julgamento, o Plenário firmou a tese que “a reincidência não impede, por si só, que o juiz da causa reconheça a insignificância penal da conduta, à luz dos elementos do caso concreto”. Todavia, os casos apreciados eram relacionados ao crime de furto.
Registre-se que as duas turmas afastam a aplicação do princípio da insignificância aos acusados reincidentes ou de habitualidade delitiva comprovada. Contudo, os ministros Gilmar Mendes e Celso de Mello têm aplicado entendimento diverso na 2ª Turma.
Porém, insta indagar pela possibilidade da aplicação da insignificância apesar da reincidência, haja vista estarmos diante de uma excludente de tipicidade.
Como dito alhures, o princípio da insignificância atua como causa excludente de tipicidade, visto que apesar de estar formalmente típica, a conduta não traz lesão digna de o Direito Penal intervir. Sob esse prisma, estamos tratando de questões objetivas e não subjetivas. Com a não aplicação em razão da reincidência ou até mesmo dos maus antecedentes, estaremos diante do famigerado Direito Penal do autor, como afirma o ministro Gilmar Mendes no HC 181.389.
Estamos diante de uma questão de tipicidade, e não de individualização da pena. A incidência ou não deve se pautar nos requisitos objetivos, estes já estabelecidos pelos tribunais superiores. A conduta minimamente ofensiva continuará com ausência de ofensividade independente da reincidência ou dos maus antecedentes.
Em julgamento recente, o STJ afastou a incidência do princípio da bagatela com base nas condições pessoais do impetrante. No caso, o paciente ostentava oito condenações transitadas em julgado e nos últimos 12 meses havia tido seis procedimentos policiais. Todavia, a conduta permaneceu com lesão insignificante, sendo desnecessária a intervenção do direito penal.
Dessa forma, entende-se que a aplicação do princípio da insignificância (ou bagatela) deve observar a imprescindibilidade da análise de cada caso individualmente, haja vista que sopesar uma habitualidade criminosa como fator capaz de obstaculizar a aplicação do princípio de forma automática não se coaduna com os direitos e as garantias constitucionais, mormente as decisões judiciais motivadas.
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Artigo publicado no site Conjur.
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Autor(es): David Metzker e Rodrigo Corbelari.