Imaginemos você, como advogado, impetra um habeas corpus no Tribunal de Justiça de seu Estado, fazendo pedido liminar em razão do preenchimento dos requisitos de periculum in mora e fumus boni iuris. Após a distribuição e o devido encaminhamento ao relator sorteado, o pedido liminar é negado, requerendo, o relator, as informações prestadas pela autoridade coatora.
Qual a medida que você, como advogado, irá lançar mão?
Os Tribunais têm a previsão do agravo regimental contra decisão de relatores e de Presidentes. Todavia, a regra é a impossibilidade de recorrer em face da decisão que indefere liminar em habeas corpus, visto que o pedido liminar não tem previsão no ordenamento jurídico, em sede de habeas corpus. Em razão da ausência de previsão, também não há previsão de recurso contra decisão que nega o pedido liminar[1] [2].
Não cabendo agravo contra decisão que indefere liminar[3], é possível a impetração de novo habeas corpus em face dessa decisão?
A prática criminal ensinava o manejo de novo habeas corpus como meio para impugnar o indeferimento da liminar. Todavia, o STF, em outubro de 2003, aprovou a edição da súmula 691[4], trazendo a impossibilidade de conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão que indefere liminar em tribunal superior.
Não obstante a súmula se referir aos tribunais superiores, os tribunais estaduais e regionais passaram a aplicar a referida súmula por analogia, não conhecendo de habeas corpus contra decisão indeferitória de liminar.
Sem a possibilidade de interpor agravo e não podendo manejar o remédio constitucional, qual seria a saída para o impetrante quando se vir diante de uma ilegalidade passível de visualização em uma análise perfunctória?
O STF, bem como o STJ posteriormente, passaram a conceder ordem de habeas corpus de ofício quando presente uma flagrante ilegalidade.
O STF, em seu regimento interno, prevê, precisamente no artigo 193, inciso II, que:
Art. 193. O Tribunal poderá, de ofício:
i – usar da faculdade prevista no art. 191, III;
ii – expedir ordem de habeas corpus quando, no curso de qualquer processo, verificar que alguém sofre ou se acha ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, por ilegalidade ou abuso de poder.
O artigo 203[5] do regimento interno do STJ, prevê da mesma forma, assim como normalmente os tribunais regionais e estaduais.
Destarte, quando o habeas corpus tem por objetivo demonstrar uma flagrante ilegalidade no caso que está em análise, os tribunais superiores irão mitigar a súmula 691 do STF, para, de ofício, conceder a ordem do habeas corpus.
O inigualável Ministro Celso de Mello, com a sua habitual sabedoria e sensibilidade, foi muito feliz ao ter emitido DECISÃO nos autos do HC 106.860/SC, j. 25/02/2011, nos seguintes termos, verbis:
“A não aplicação da Súmula 691/STF tem ocorrido na prática processual desta Corte, como o evidenciam diversas decisões proferidas, quer em sede monocrática (HC 90.112-MC/PR, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 89.113-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 87.353-MC/ES, Rel. Min. GILMAR MENDES – HC 88.050-MC/SP, Rel. Min. GILMAR MENDES- HC 88.569-MC/PE, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 88.129-AgR/SP, Rel. Min. JOAQUIM BARBOSA – HC 89.132-MC/RS, Rel. Min.MARCO AURÉLIO – HC 89.414-MC/RS, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 86.634-MC/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.), quer em sede colegiada (HC 86.864-MC/SP, Rel. Min. MARCO AURÉLIO – HC 85.185/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – HC 86.864-MC/SP, Rel. Min. CARLOS VELLOSO):
“1. COMPETÊNCIA CRIMINAL. ‘Habeas corpus’. Impetração contra decisão de ministro relator do Superior Tribunal de Justiça. Indeferimento de liminar em ‘habeas corpus’, sem fundamentação. Súmula 691 do Supremo Tribunal Federal. Conhecimento admitido no caso, com atenuação do alcance do enunciado da súmula. Precedentes. O enunciado da súmula 691 do Supremo não o impede de, tal seja a hipótese, conhecer de ‘habeas corpus’ contra decisão do relator que, em ‘habeas corpus’ requerido ao Superior Tribunal de Justiça, indefere pedido de liminar”.”
(HC 87.468/SP, Rel. Min. CEZAR PELUSO – grifei)
Cumpre registrar, por oportuno, que esta colenda Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal – considerada a excepcionalidade da questão jurídico-constitucional suscitada no processo de “habeas corpus” – tem afastado a incidência da Súmula 691/STF, sempre que a decisão questionada perante esta Suprema Corte refletir hipótese de manifesta contrariedade à Constituição, à lei ou a diretriz jurisprudencial predominante neste Tribunal (HC 89.025-AgR/SP, Rel. p/ o acórdão o Min. EROS GRAU – HC 90.957/RJ, Rel. Min. CELSO DE MELLO – HC 94.016/SP, Rel. Min. CELSO DE MELLO, v.g.)”
O próprio Colendo Superior Tribunal de Justiça tem adotado entendimento flexível, admitindo impetração dessa natureza em situações absolutamente excepcionais, onde restar claramente evidenciada a ilegalidade do ato coator:
(i) proveniente de decisão inquestionavelmente teratológica;
(ii) despida de qualquer razoabilidade e, em especial, e;
(iii) quando há flagrante afronta a entendimento pacificado na Corte revisora (AgRg no HC n. 46.635-RJ, 5ª. Turma, Relatora Min. Laurita Vaz, j. 27.09.2005).
Diante disso, deverá o impetrante, no habeas corpus contra decisão indeferitória de liminar, abrir um tópico para tratar do afastamento da súmula 691 do STF no caso sub judice e, demonstrar de forma clara e objetiva, qual a ilegalidade que torna o caso merecedor da ordem de habeas corpus de ofício.
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[1] TJRS, Agravo Regimental 70012318200, 8.ª Câmara Criminal, j. 27.07.2005.
[2] STF, HCAgR 83.673/RJ, 1.ª Turma, DJ 23.04.2004. STJ, AgRg no HC 206.986/SC, 5.ª Turma, Rel. Min. Jorge Mussi, DJ 29.08.2011; STF, HC 93.494 MC-AGR/PR, 2.ª Turma, Rel. Min. Eros Grau, DJ 25.04.2008.
[3] AGRAVO REGIMENTAL. HABEAS CORPUS. IMPETRAÇÃO CONTRA O INDEFERIMENTO DE LIMINAR EM OUTRO WRIT. NÃO CABIMENTO. INOCORRÊNCIA DE FLAGRANTE ILEGALIDADE. DEMORA NO JULGAMENTO DA APELAÇÃO. NÃO OCORRÊNCIA. 1. O Superior Tribunal de Justiça tem compreensão assentada no sentido de não caber habeas corpus contra decisão que denega liminar, a não ser que reste demonstrada flagrante ilegalidade, o que não ocorre na espécie. 2. Não há que se falar em demora no julgamento da apelação, que tramitou regularmente, impondo-se notar que o atraso decorre de força maior, resultante do notório volume de feitos submetidos àquela Corte, como de resto praticamente a todas as unidades jurisdicionais do país. 3. Agravo regimental a que se nega provimento.
(STJ – AgRg no HC: 72137 SP 2006/0271905-0, Relator: Ministro PAULO GALLOTTI, Data de Julgamento: 20/03/2007, T6 – SEXTA TURMA, Data de Publicação: DJ 28/05/2007 p. 402)
[4] Não compete ao Supremo Tribunal Federal conhecer de habeas corpus impetrado contra decisão do relator que, em habeas corpus requerido a tribunal superior, indefere a liminar.
[5] Art. 203. O Tribunal poderá, de ofício: I – se convier ouvir o paciente, determinar sua apresentação à sessão de julgamento; II – expedir ordem de habeas corpus, quando, no curso de qualquer processo, verificar que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.